terça-feira, 16 de junho de 2009

PAUSA - MEU CORPO É UM ACONTECIMENTO

Ao iniciar uma pesquisa que envolve ações corporais, mesmo que muitas delas desdobradas em processos fotográficos e em vídeo, o tempo como presença indistinta e sem corpo, capaz de se atualizar a partir destas mesmas ações, é um elemento fundamental na percepção e construção dos trabalhos advindos daí. Apesar da facilidade em enumerar ações de forma cronológica, evidenciando um passado que determina fatores presentes e que são da mesma forma, passado como causa de um futuro imaginário, o transcorrer ininterrupto do tempo só é possível de se verificar através de uma série de acontecimentos que o preenche.
Anne Cauquelin, no livro Freqüentar os Incorporais, nos apresenta a estreita relação entre o pensamento filosófico estóico e a arte contemporânea, especificamente naquilo que os estóicos denominavam incorporal. E é através do pensamento sobre o incorporal estóico que podemos nos ater às questões próprias do pensamento atual em arte. Vazio, lugar, tempo e exprimível são discutidos enquanto fios condutores reflexivos capazes de nos situar no âmbito da produção contemporânea. E não poderia ser mais adequado situar tais questões dentro do assunto desta pesquisa de mestrado.
É Cauquelin quem diz que:
“A orientação linear não tem espaço de ser no tempo incorporal. Ele ignora a sucessão dos fatos passados, assim como não prejulga - dando-lhes uma forma a priori – os fatos que o preencherão. O que existe é apenas o presente, o momento – ou o instante, como se queira – que dá um corpo ao atemporal e o faz vir a ser tempo.”
Os acontecimentos seriam, dessa forma, preenchimentos para o atemporal. Estes preenchimentos atualizam momentos que se apresentam como linearidades temporais. O presente se desfaz imediatamente após sua apreensão, após o acontecimento que o preenche, abrindo-se ao nada que convida novos acontecimentos.
O corpo como acontecimento é exatamente esta capacidade de fazer do atemporal um momento de tempo presente. É ele que permite sucessões de sentidos entre acontecimentos passados, ligando-os ao presente e desdobrando-se em futuro. De fato, as relações entre passado, presente, futuro não são da natureza do acontecimento e sim dos sentidos que os preenche. Somos nós que fazemos o malabarismo mental de elaborar sucessões lineares aos fatos.
Tudo isso é bem obvio, e se repito ou afirmo sua existência, é exatamente buscando situar meu corpo dentro desse acontecimento, tornando-o a própria imagem do tempo, sua presença e vitalidade. Um corpo que é tempo atravessa tanto uma realidade da carne, que o constitui, como também aquilo que suspende as ações retirando-as do contexto visível e que pode, nesse caso, ser chamado de incorporal. O incorporal então seria o acontecimento enquanto relação entre corpos, uma presença invisível de tempo, que sendo atemporal, acolhe a ação presente enquanto matéria.
Penso que, para acentuar tal característica de presença, em que o corpo é imanência vaporosa em constante construção e caos, a ausência aparente de sentidos e a precariedade das forças lineares de ações previsíveis constituem elementos capazes de desestabilizar nossa percepção cognitiva linearizante. O corpo como acontecimento desloca qualquer possibilidade imediata de representação, interpretação e julgamento, situando-se no limiar entre presença e seu desdobramento temporal/espacial. Diante das imensas possibilidades que nos estimula a agir, o presente é o fato real em sua magnitude, indistinto e desterritorializado de qualquer conexão entre passado e futuro. Os sentidos advindos dessa presença são estímulos para posteriores ações, ilimitadas e finitas, mas sempre abertas ao devir. Estímulos sensoriais e perceptivos para deslocamentos existenciais, contribuindo ativamente na construção de mundos incessantes, também ilimitados e finitos.
Meu corpo como acontecimento é o advento das forças físicas visíveis em consonância a estímulos invisíveis, trocas sensíveis, afetações recíprocas, imanência e incorporalidade dos seres efêmeros e sensíveis que habitam o vazio e que não podem ser vistos pelo olho-do-visível, o olho retiniano.

CAUQUELIN, Anne. Freqüentar os incorporais: contribuição a uma teoria da arte contemporânea . São Paulo: Martins, 2008, pag. 94.

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