domingo, 13 de junho de 2010

texto não oficial, desdobramento da dissertação MEU CORPO É UM ACONTECIMENTO. (leitura feita durante a defesa de dissertação, dia 14/12/09)

Segmento 12: PAUSA 06

Ao iniciar uma pesquisa que envolve o corpo, o tempo como presença indistinta, capaz de atualizar-se a partir dos acontecimentos que o preenche, é um elemento fundamental na percepção e construção das práticas artísticas desenvolvidas até aqui. Apesar da facilidade em enumerar ações de forma cronológica, evidenciando um passado que determina fatores presentes e que são da mesma forma, passado como causa de um futuro imaginário, o transcorrer ininterrupto do tempo só é possível de se verificar através de uma série de acontecimentos que o preenche. Assim, o presente é o todo do acontecimento, atualizando a temporalidade como força manifesta.
Penso que, para acentuar tal característica de presença, em que o corpo é imanência vaporosa em constante construção e caos, a ausência aparente de sentidos e a precariedade das forças lineares de ações previsíveis constituem elementos capazes de desestabilizar nossa percepção cognitiva seqüencial. O corpo como acontecimento desloca qualquer possibilidade imediata de representação, interpretação e julgamento, situando-se no limiar entre presença e seu desdobramento temporal/espacial. Diante das imensas possibilidades que nos estimula a agir, o presente é o fato real em sua magnitude, distinto e desterritorializado de qualquer conexão entre passado e futuro. Os sentidos advindos dessa presença são estímulos para posteriores ações, ilimitadas e finitas, mas sempre abertas ao devir. Estímulos sensoriais e perceptivos para deslocamentos existenciais, contribuindo ativamente na construção de mundos incessantes, também ilimitados e finitos.
Irei, nesse momento, me ater ao pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari, especificamente trabalhado no livro O que é a filosofia? favorecendo uma reflexão intencionalmente irregular que, de alguma forma, perpassa a escrita, a pesquisa, a prática e demais elementos construtores dessa dissertação. Dessa experiência, busca-se revelar caóides que, de acordo com os autores acima, são “as realidades possíveis em planos que recortam o caos”.pg 267
O conceito de caóide, desenvolvido por Deleuze e Guattari, funciona aqui como possibilidade de refletir sobre o corpo e o presente do acontecimento, favorecendo supostos encontros entre teoria e prática. Para possibilitar uma aproximação dessa natureza, o intersticial, a fenda, a fresta talvez sejam imagens possíveis, capazes de permitirem tal aproximação ao revelar no vazio que as constitui a afirmação de algo não visível. Portanto, para tal embate, no sentido imagético do termo, pretendo aqui permitir que a fenda, a fresta capaz de produzir realidades, seja momentaneamente exposta, para que, a partir dessa erótica violência e despudor, possamos juntos experimentar o corpo como acontecimento.
De acordo com os autores,
“ O pintor não pinta sobre uma tela virgem, nem o escritor escreve sobre uma página branca, mas a página ou a tela estão já de tal maneira cobertas de clichês preexistentes, preestabelecidos, que é preciso de início apagar, limpar, laminar, mesmo estraçalhar para fazer passar uma corrente de ar, saída do caos, que nos traga a visão.”pg. 262
O corpo como acontecimento me parece capaz de assimilar tais superfícies – da tela ou do papel – apresentando-as como pele. E nesse plano sensível, poroso, limpar os clichês não apenas destroça o visível, mas faz do invisível, do interno e subjetivo que nos constitui algo perfurado por vulvas multiplicadas de onde jorram afecções possíveis. Se a dissertação MEU CORPO É UM ACONTECIMENTO manifesta-se como algo físico, presença material, a experiência que permitiu tal manifestação é da ordem do invisível, do efêmero, do vazio como lugar entre uma borda e outra, entre uma margem e seu espelhamento na outra margem. Assim, na arte, o corpo consciente de si é o criador das possíveis realidades que o constitui e como uma caóide, manifesta-se pensamento, recorta o vazio do caos dando-lhe sentido. Dessa permissividade, arte e vida não sugerem uma proximidade, um emparelhamento, mas sim uma junção capaz de neutralizar dualidades.
Para os autores, a arte seria uma caóide, assim como a ciência e a filosofia, o que me permite concluir, seguindo um espírito livre próprio do campo artístico, que o corpo – meu corpo, nossos corpos – seriam também caóides. Entretanto, se sigo o pensamento dos dois, algo se complica nessa reflexão, já que para eles a “junção (não a unidade) dos três planos é o cérebro.”p.267 E nessa proposição, o cérebro é considerado algo como o próprio eu, e não apenas um órgão capaz de funções úteis submetidas à plena capacidade perceptiva e cognitiva de algo maior. Como sujeito, o cérebro conteria a primazia de ser pensante, cristalizador do corpo homem e manifestação independente de qualquer relação secundária entre as partes do corpo. Como comentam os autores,
“Se os objetos mentais da filosofia, da arte e da ciência (isto é, as idéias vitais) tivessem um lugar, seria no mais profundo das fendas sinápticas, nos hiatos, nos intervalos e nos entre-tempos de um cérebro inobjetivável, onde penetrar, para procurá-los, seria criar.”p.268
O assunto é vasto e me parece inadequado tentar elucidá-lo nesse momento, já que a situação prioriza um fechamento, uma defesa do que já foi dito até então, no percurso da pesquisa. De qualquer forma, percebo a porta entreaberta, orientando-me a seguir em frente, a desbravar mais uma percela, um segmento de alucinação capaz de sensibilizar partes adormecidas desse corpo. Para isso, o caminho me parece ser o da investigação, da aventura exploratória, do próprio devir. E, portanto, me limitarei a dizer sobre alguns assuntos pertinentes, em forma de recorte textual, para, em seguida, fortalecer os excessos cometidos no texto dessa dissertação e, quem sabe, talvez, no próprio acontecimento dessa defesa.


Ao me referir ao cérebro, corpo, movimento, tempo etc, é praticamente impossível deixar à margem o termo consciência. Como dizer sobre a fresta e o vazio que a constitui, sobre a dor e a metamorfose que a alimenta, sobre performance enquanto acontecimento vivo em sua materialização sem com isso pensar naquilo que me faz ver o visível e o invisível, sentir o exprimível e o inexprimível, conhecer o que é manifesto e o que não é? Enfim, abordar essa realidade – a consciência – me parece adequado nesse momento, funcionando aqui como um apêndice, uma dobra que se revela na própria fenda criada pelo texto da dissertação.
Swami Shantananda, monge da tradição Siddha Yoga, desenvolve uma investigação sobre o Shivaísmo da Caxemira, milenar filosofia da Índia, no livro The Splendor of Recognition – An Exploration of the “Pratyabhijna-hrdayam”, a text on the Anciente Science of the Soul. (O Esplendor do Reconhecimento – Uma investigação do Pratyabhijñã-hrdayam, um texto da antiga ciência da alma). Nesse livro, o autor discorre sobre assuntos de profunda complexidade, facilitando nossa compreensão sobre temas fundamentais de acordo com o que podemos denominar de geografia do Ser.
Para iniciar, Shantananda nos presenteia com uma breve apresentação do termo citi, palavra em sânscrito que deriva da raiz cit, denominando atributos como perceber, observar, entender, aparecer, conhecer. Citi então é o poder de fazer as coisas aparecerem, de dar vida ao que não tinha, de despertar. Assim, citi é denominada consciência. “Além disso, o shivaísmo designa atributos femininos a esse poder e lhe dá o nome de Citi” – Deusa suprema, mãe de toda criação. Desenvolvendo aspectos que facilitam nossa compreensão sobre a Consciência suprema – Citi – o autor aprofunda reflexões a respeito dos 10 Sutras que dão forma e conteúdo ao Pratyabhijna-hrdayam.
Deter-me-ei apenas em um dos aspectos descritos, buscando nortear um caminho que induza nossa percepção sobre a condição do corpo e da consciência, de acordo com essa filosofia. Assim, antes de tudo, é fundamental ter consciência de que a Consciência aqui é de natureza divina, é manifestação criativa do universo, é univocidade ontológica dos seres. Para um conhecimento mais claro de Citi, pode-se verificar os dois aspectos que a constitui. O primeiro, praka ´sa (luz) e o outro vimar´sa (conhecimento, consciência, percepção). Assim a Consciência é luz, capaz de revelar e dar forma ao que existe. Portanto, a luz, quando se dobra sobre ela mesma, permite a capacidade reflexiva, perceptiva e consciente do que é manifesto, tornando possível a elaboração de sentidos para o que sentimos, conhecemos, consideramos. Sem essa capacidade, a luz seria apenas algo inerte, ou caos total. Assim, praka ´sa é a ponta da seta da nossa percepção, a percepção direta e presente, sem considerações, julgamentos, reflexões; e vimar´sa, que acontece praticamente ao mesmo tempo, seria o discernimento, a capacidade de reconhecimento e consciência cognitiva. Vimar´sa, a percepção consciente, é comum a todos nós e nos orienta diante dos acontecimentos. Olhar para sua própria consciência, perguntando-se “quem vê através dos meus olhos? quem sou eu? quem experimenta a mente?” é uma realização semelhante à apreendida pela Consciência universal, que desdobrando-se sobre ela mesma, se reconhece.
Para ir além nessa compreensão, o autor apresenta mais um poder da Consciência, elucidando aspectos que podem nos orientar nessa reflexão. O poder de criar um universo, manifesto na nossa forma particular de percepção, é em si um ato de criação, já que tudo aquilo de que temos consciência é recriado a cada nova experiência, a cada novo olhar, a cada nova relação. Inevitavelmente, o mundo em que agimos e vivemos é nossa própria criação, manifestando-se a partir de nosso sentir particular, desdobrando-se diante de nossos olhos como nossa própria luz. Repetimos assim o processo criativo do Universo, criando e recriando nossas experiências diárias, sensações, contatos. Dessa forma, praka´sa aqui é o próprio Senhor da criação, Shiva, luz manifesta; e vimar´sa o poder de reconhecimento de si, a Shakti - proteção, força, potência, energia. Shiva e Shakti, unidos, manifestam o movimento vibratório arquetípico, o desejo de ser a criação. Dessa manifestação, a natureza essencial da Consciência é praka´sa vimar´sa - Shiva (energia masculina) e Shakti (energia feminina) como unidade.

José Gil, filósofo português, no artigo Abrir o corpo, incluído no catálogo Lygia Clark, da obra ao acontecimento, apresenta-nos uma reflexão sobre a capacidade do corpo de se abrir para o mundo e para si mesmo como potência orgânica e ser de consciência e de inconsciente. Sem o misticismo próprio da filosofia indiana aqui apresentada e mais adequada ao pensamento acadêmico, Gil descreve uma forma de consciência divergente da habitual, propondo relações profundas entre criação e cura. Invertendo o ponto de vista cartesiano, de um corpo situado no espaço e uma consciência incorporal, o autor preconiza outra instância para as manifestações do corpo e da consciência. Denominando de consciência do corpo o outro lado da intencionalidade consciente, de característica fenomenológica, o foco de atenção se situa na parte de trás dessa mesma consciência, indo além de uma percepção cognitiva capaz de identificar a dor em partes do corpo ou o prazer que se sente. Assim, consciência do corpo é impregnação da consciência pelo corpo, capacidade do corpo de ser receptor das forças do mundo. Nessa impregnação, a distinção entre corpo e consciência se liquefaz, favorecendo a trama entre pensamento e movimento do corpo e a capacidade já implícita do corpo como consciência “capaz de captar os mais ínfimos, invisíveis e inconscientes movimentos dos outros corpos. Movimentos de forças e de pequenas percepções.”p.64
Movimento de outra natureza, arquetípico, original, o emparelhamento e sincronia entre movimento do pensamento e movimento do corpo (não apenas movimento no espaço físico) atualiza-se a cada momento de tempo/espaço. Ontológico, o corpo metamorfoseia-se em órgão de captação das sensibilidades e vibrações dos afetos que o atinge. É essa capacidade e intensidade de contágio que nos permite conceber o corpo aberto, o corpo poroso e vivo. Daí que, como órgão de percepção, o corpo situa-se em um espaço distinto do que habitualmente o consideramos. Fronteiriça, tal consciência é interior e exterior, manifestando-se na linha demarcada entre percepção do espaço e percepção parcial do corpo. Apreendemos o mundo a partir dessa zona fronteiriça, que em nós é a pele, zona dimensional capaz de manifestar-se como órgão de “visão”, “audição”, “paladar”, descaracterizando todo o privilégio atribuído aos órgãos dos sentidos, como o ouvido e os olhos. A pele sendo uma consciência, “coextensiva à sua superfície”, vê o mundo a partir de todos os seus pontos – rizoma celular.
Essa abertura permite ao corpo um intenso alargamento topológico, profundo mergulho em si e no mundo, ativando a capacidade de conexão e agenciamento com outros corpos, favorecendo sentidos, consistências e pontos de contato.
“Abrir o corpo é criar a zona em que o corpo, visto do exterior do interior, entra em contágio com o mundo. É a zona do devir constante das crianças que brincam, em que as palavras agem e os gestos falam, em que o corpo espectral se dissolve nas forças que se conectam com as forças do outro.” p. 66

Se me permito experimentar a pele como cérebro, se meu corpo age como uma caóide, onde se incrustam ideias vitais, pensar não é mais privilégio de um órgão específico, mas de toda uma zona de superfície. Nesse caso, a criação seria um ato de existência, resistência e celebração e a arte o campo manifesto desse poder. Assim, onde se encontra a arte? Campo movediço, virtual, sua presença aqui não difere do próprio acontecimento que a constitui, reforçando a junção entre pulsão de vida e do que dela pode ser dito. Dessa forma, o corpo como acontecimento é o próprio campo, favorável às proposições advindas daí e seus desdobramentos no espaço/tempo. Com isso, não pretendo desqualificar a construção artística centrada na materialidade dos objetos, em suas qualidades conceituais e estéticas, mas propor uma relação que parta do contágio do corpo com outros corpos, estímulo para manifestações experimentais vitalizadas pelos afetos – consciência inconsciência - como prática.
Tal afirmação se repete insistentemente no texto da dissertação, demarcando territórios que transbordam seus limites nos excedentes da linguagem. Palavras surradas pelo retorno constante, mas que, nesse caso, é como uma batida sonora, um pulsar ritmado. Parece-me que esse ritmo é algo explosivo, inconsciente, manifestação de um desejo que se mantém do início ao fim. É como uma oração, que nos faz sensíveis ao que se é dito exatamente na parcela de esquecimento de que a repetição se constitui. Assim, mesmo exaustivo, o retorno constante à ideia de soberania, vitalidade do corpo, dualidade e unicidade, desterritorialização e transgressão dos clichês que nos constitui, reforçam a necessidade de afirmação de uma realidade que se quer estabelecer como presença. Portanto, afirmar repetidamente o mesmo me parece uma dosagem necessária no processo da escrita, favorecendo a incrustação no corpo desse pulsar latente, afirmação do desejo de abertura.